A REVOLTA DE NIKA - A briga esportiva que quase derrubou um Imperador
- Demetrius Silva Matos
- 26 de abr. de 2022
- 5 min de leitura
Gostemos ou não, é impossível negar a influência dos grandes eventos esportivos sobre a humanidade em geral. Desde os primórdios dos Jogos Olímpicos, na Grécia, onde gregos de todo o mediterrâneo viajavam até a cidade de Olímpia (sendo essa a razão do nome) para verem seus atletas disputarem diferentes eventos objetivando trazer gloria, tanto a suas cidades quanto para si mesmos, o que perdura até os dias de hoje.
No caso brasileiro, convivemos com a fascinação nacional pelo futebol, existindo estádios gigantescos (alguns deles herança da Copa do Mundo de 2014) onde podem ser apreciados pela população, em geral com ingressos a preços exorbitantes.
O que leva alguém a se apaixonar por um evento esportivo?
A satisfação em ver alguém alcançar algo que ele jamais poderia?
O reles sentimento de pertencer a algo maior do que si mesmo (uma torcida, um grupo para discutir sobre isso) no maior complexo de cardume?
Não sei, e nem poderia afirmar nada (afinal estou incluído na porcentagem que não vê nada demais nos grandes eventos esportivos).
Mas, além das torcidas e das alegrias, é impossível negar o lado “feio” dos eventos esportivos por parte da torcida: a toxidade dos lados envolvidos bem como eventuais brigas entre os torcedores, muitas altamente violentas. Por exemplo, em 2014, corria-se rumores que, caso a Argentina ganhasse a Copa do Mundo no Rio de Janeiro, a torcida argentina estava tendente a “causar severos tumultos” à cidade em comemoração a sua vitória. Totalmente compreensível, não é?
“¡Hermano, linchemos la ciudad del País que nos dio la victoria de la Copa del Mundo!” “¡Joder, que grán idea!”.
Porém, minha intenção não é a de falar sobre a Copa do Mundo de 2014, mas sim de como torcidas esportivas podem ser altamente violentas, tanto que, muitos séculos anteriores, um grupo de torcedores enfurecidos quase fizeram um Imperador fugir de sua capital com o rabo entre as pernas. Fantasioso? Exagerado? Não, é apenas a história pura e simples, acompanhe-me nessa, que foi a maior e mais espantosa briga esportiva da história.
Estamos no século VI d.C. na cidade de Constantinopla, capital do que havia sobrado do outrora imponente Império Romano, sendo que neste período era popularmente conhecido como Império Bizantino. Se a cidade de Roma possuía o lendário Coliseu, onde homens e feras lutavam até a morte para a alegria das massas e do Imperador, Constantinopla possuía outra forma de entretenimento em massa: o Hipódromo, local em que as pessoas de todas as classes sociais se reuniam para ver uma serie de corridas de bigas (veículo da antiguidade em geral puxado por quatro cavalos) de modo tanto a se entreter como conseguir dinheiro fácil por meio de apostas (e você pensando que a aposta em cavalos era algo moderno). Tal como os atuais times de futebol, a corrida de bigas também possuíam times que disputavam a vitória nas corridas, porém se diferenciavam no fato de que os times de bigas acabavam por representar aspectos político-sociais da sociedade bizantina, ou seja, cada classe social tendia a torcer para o mesmo time.
Dentre os vários times, dois merecem destaque: os verdes e os azuis:
Os verdes representavam os partidários de ideias democráticas ou simplesmente anárquicas, tendo em geral torcedores pertencentes a classes como comerciantes e artesãos, bem como adeptos da doutrina cristã monofisista (que desejavam ver em Jesus apenas a natureza divina, ignorando a humana), podendo ser classificado como o time da “plebe”.
Os azuis, por sua vez, representavam os grandes proprietários rurais, a Igreja Ortodoxa bem como a família do Imperador (em outras palavras, era o time da “elite”).
Em uma determinada corrida no ano de 523, as bigas dos times verde e azul chegaram praticamente empatadas na linha de chegada, para a aflição daqueles que tanto torciam quanto haviam apostado e não sabiam qual foram os cavalos vencedores. Como na época não existia nada similar a um juiz esportivo (ou um tira teima virtual), decidiu-se que quem deveria dar o veredito seria a mais alta autoridade do Império: o Imperador Justiniano.
Justiniano, por sua vez, havia declarado que a biga dos azuis, o seu time, foi a vencedora, para a grande indignação dos que torciam pelos verdes, que entenderam que o Imperador hipocritamente concedeu a vitória ao seu próprio time. Tal indignação levou a plebe bizantina a rebelião, que se alastrou por toda a cidade. Os revoltosos gritavam “Nika!”, palavra grega que significa vitória, sendo a revolta chamada assim por esse motivo.
Antes de mais nada, deve-se compreender que tal rebelião não foi causada unicamente por essa discussão esportiva. Há muitos anos a população de Constantinopla vinha sofrendo de males como a fome, a falta de moradias para todos e os altos impostos cobrados por Justiniano, sendo essa deflagração no Hipódromo apenas a gota que fez o copo derramar.
Voltando a revolta, a plebe rapidamente conseguiu linchar a guarda imperial presente no Hipódromo e arredores, e começaram a depredar os edifícios e os símbolos da elite que desprezavam, resultando no incêndio que quase destruiu a Igreja de Santa Sofia e que o Palácio Imperial sofreu grandes danos. Os revoltosos tentaram então empossar o nobre Hipácio, inimigo político de Justiniano, como o novo Imperador, onde este viu uma oportunidade no caos que ocasionaria em sua própria ascensão ao topo do Império, mas que depressa concordou com a aclamação da plebe. Enquanto isso Justiniano, vendo o total caos que se encontrava a cidade, havia planejado abandoná-la, de modo a retornar apenas quando as coisas se acalmassem.
Conta-se que Justiniano somente não abandonou a cidade porque, ao tentar fazê-lo, sua esposa, a Imperatriz Teodora, apenas olhou para ele com desdém e pronunciou:
“ainda mesmo que a fuga seja a única salvação, não fugirei, pois aqueles que usam a coroa não devem sobreviver à sua perda. Se quiseres fugir, César, foges. Tens dinheiro, teus navios estão prontos e o mar aberto. Eu, porém, ficarei. Gosto dessa velha máxima: a púrpura é uma bela mortalha”.
Conta-se então que Justiniano recuperou a razão e começou a agir para sufocar a revolta. Se isso foi realmente verdade? Difícil precisar, afinal isto foi contado pelo historiador Procópio, que era parte da corte de Justiniano, fazendo com que sua visão dos fatos seja no mínimo suspeita, porém na falta de outras fontes não temos escolha a não ser confiar na palavra de Procópio.
Após alguns dias de articulação, Justiniano conseguiu trazer uma unidade do exército bizantino para dentro da cidade, lideradas pelo general Belisário que conseguiu cercar o Hipódromo, centro da revolta, e aniquilou seus revoltosos. Contam-se que um total de trinta mil pessoas foram degoladas pelas tropas de Belisário, dentre elas integrantes da plebe já citada, o nobre Hipácio e alguns outros nobres que hipocritamente haviam se juntado a rebelião para tentar obter uma “renda” adicional.
Após o fim da rebelião feita a base de sangue e com seu maior inimigo político decapitado, Justiniano pode finalmente se sentir seguro no trono, que duraria ainda muitas décadas.
Portanto, cuidado com as disputas esportivas!

Por DEMETRIUS SILVA MATOS
Advogado OAB/MA
Pós Graduado em Ciências Políticas pela Uninter
Autor do livro: "Direito na Ditadura - o uso das leis e do direito durante a ditadura militar"
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